Textos e reflexões sobre o ocorrido não faltam, mas me incomoda um pouco toda essa movimentação sobre o "Je ne suis pas Charlie".
Por estar tão próximo da situação - na minha cidade, a primeira manifestação ocorreu em torno de 5 horas depois dos evento e tenho vários amigos em Paris - me incomodam um pouco certas reações.
Por favor, não tentem usar esse momento de defesa à liberdade de expressão e contra o medo para polemizar sobre questões de proteção de minorias e imperialismo. Não tentem deslegitimar um movimento cuja luta é outra.
Para todos os que vem condenando o slogan, na minha opinião, a falha de compreensão é completa.
O slogan "Je suis Charlie" não busca o ostracismo dos franceses de religião muçulmana. É evidente para todos que o atentado é um ataque tanto aos muçulmanos quanto à liberdade de expressão. Nas manifestações, é comum ouvir "Não às amálgamas", que quer dizer "não à assimilação do Islã ao terrorismo".
A maior parte dos franceses entende esse atentado como um golpe à cidadania por duas razões: o ataque óbvio à liberdade de expressão, mas também o ataque à soberania do Estado, representado pelos policiais feridos.
Uma minoria se alinha, sim, à extrema direita. Mas a grande maioria dos franceses se opõe ao partido e teme esse aumento.
Existe, um aumento da islamofobia de forma odiosa na França, incarnada principalmente por Soral, Zemmour, o FN et uma parte de direira.
Os desenhistas não tem nada a ver com isso. Para quem os conhecia de verdade (e não apenas sobre os poucos desenhos que vemos na internet), são ferrenhos humanistas que usam o humor contra o integralismo religioso em geral, seja Católico ou Islâmico.
Eu pessoalmente não leio o semanal, mas para todos os franceses, ele sempre foi um símbolo da liberdade de expressão. Mesmo os que eram completamente contra o que eles faziam.
Li um dos textos que dizia que "as caricaturas são perigosas, e até criminosas. Isso é completamente errado, pois “crime” assume um conjunto de leis específico. E as leis daqui não são as mesmas do Brasil. O direito francês parte do princípio que o Homem é livre e “onipotente”, e cabe a lei revogar os casos as exceções. Contudo, o direito de expressão não lhes foi revogado. Ele fala em um momento de “censura positiva”. Sério? Num país que viveu uma ditadura militar? Quem decide onde está o ponto? O governo, que sempre sabe o que é bom para a população? Um comitê de especialistas em politicamente correto?
Fique claro que na França o direito à liberdade de expressão é inegociável.
Ao analisar algo, é importante procurar o contexto. Não vamos nos deixar levar por imagens soltas antes de ver a crítica associada. Vamos ser um pouco mais profundos e ler a segunda página antes de falar qualquer coisa.
Eles atacavam não somente todas as religiões indiscriminadamente, mas faziam crítica social e política à todas as instituições.
Quanto aos argumentos sobre como "atacar a maioria pode mas atacar minorias não", vale lembrar que judeus também não são maioria, e que se o catolicismo já foi hegemonia no país, hoje em dia, entre os adultos entre 18 e 50 anos, a maioria é sem religião [1], e entre os católicos 38% não são praticantes.
Sobre a integração da "minoria islâmica" na França, a República Francesa busca dar todos os meios jurídicos e institucionais para que os povos de confessão muçulmana possam viver sua religião livremente.
Para os que brandem as estatísticas sobre como os "franceses tem mais acesso a empregos que os imigrantes", o observatório das desigualdades [1] mostra que se a diferença na taxa de desemprego é grande, a evolução é a mesma - ou seja, não está mais fácil para um francês conseguir emprego que para um imigrante.
O Estado francês faz o máximo para ter dispositivos que garantam a dignidade da população. É um país onde até os mais ricos usufruem da saúde e educação públicas, a todos os níveis.
O slogan é unificador e quer dizer somente "Eu recuso o medo". Porque os franceses defendem a todo custo as Liberdades pelas quais são conhecidos no mundo todo.
Não é sobre defender esta ou aquela hegemonia, é sobre liberdades conquistadas com muito sangue e que estão na base da sociedade de um país.
É o grito de um povo defendendo os valores republicanos de "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" contra a ameaça daqueles que atacam ao mesmo tempo à liberdade e o espírito de fraternidade da nação.
Não deslegitimem essa luta para colocar outra discussão em pauta.
[1] http://www.ined.fr/fichier/t_telechargement/45660/telechargement_fichier_fr_dt168.13janvier11.pdf
[2] http://www.inegalites.fr/spip.php?page=article&id_article=1771
Comentários
Postar um comentário